marge-piercy

Entrevista: Marge Piercy

“Não há silêncio”: uma entrevista com Marge Piercy

Nascida em 1936, Marge Piercy for criada por uma “família patriarcal típica de trabalhadores no centro de Detroit, EUA”. Por ter contraído rubéola, seguida por febre reumática, a jovem Piercy passou muito tempo dentro de casa, e isso a colocou em contato com o mundo dos livros. Sempre curiosa, ela participava de organizações sociais no colégio e sua inteligência lhe garantiu uma bolsa de estudos na University of Michigan. Um dos aspectos mais importantes de sua juventude foi a impressão que ela tinha de si mesma: “[se] sentia do tamanho, formato, sexo, tom de voz, classe e coloração emocional errados”. Na universidade, na década de 1950, as coisas não mudaram e “tudo que [a] encantava ao primeiro contato (Walt Whitman, Emily Dickinson) acabava sendo considerado deselegante ou irrelevante para o mainstream, para a tradição”.

A década seguinte, os anos 1960, foi um divisor de águas na experiência da autora. As mudanças sociais que estavam acontecendo nos Estados Unidos e no mundo a inspiraram e a colocaram em contato com outras pessoas que tinham crenças e valores semelhantes, dando-lhe coragem para lutar por um mundo diferente. Assim, fez parte dos movimentos pelos direitos civis dos negros, além dos movimentos antiguerra do Vietnã e feminista. Em suas próprias palavras:

Ao passo que havia movimentos surgindo, e oportunidade de fazer coisas, eu despertei. Desde meus quinze anos me identifico com a esquerda, e o racismo era uma ferida purulenta da minha infância com a qual tive de lidar. Eu me importava com as questões das mulheres antes mesmo de entender tais questões. Por tanto tempo, me faltava vocabulário. Eu era alguma coisa, mas o que essa coisa era eu não sabia.

Ainda que tenha começado a escrever quando criança, e que tenha continuado a escrever nas décadas seguintes, mesmo nos momentos mais difíceis de sua vida, teve sua primeira publicação em 1968, uma coletânea de poema, e seu primeiro romance foi publicado em 1969. Desde então, já escreveu mais de 40 obras: 17 romances e 18 coletâneas de poemas, uma peça de teatro e alguns livros de não ficção. Três dentre essas obras foram escritas em colaboração com seu atual marido, o também escritor Ira Wood.

Conheci seu trabalho por meio aos meus estudos de ficção científica, quando tive a chance de ler o mais famoso de seus romances: Uma mulher no limiar do tempo (Woman on the Edge of Time), publicado em 1976, assim como He, She and It, publicado em 1991. Ambos são baseados em uma combinação de projeções imaginativas tanto positivas quanto negativas sobre o futuro.

Estabeleci contato com Piercy por meio de seu perfil no Facebook e demonstrei meu interesse no seu trabalho. Gentilmente, ela concordou em me conceder uma entrevista em outubro de 2012. Algumas questões que discutimos eram sobre seu envolvimento com a ficção científica e a utopia, seu engajamento político e sua vida como escritora.

 

Entrevistador: Primeiro de tudo, você está escrevendo algum romance hoje?

Marge Piercy: Tenho um romance com meu agente, mas estamos tendo problemas para publicá-lo.[1]

Entrevistador: Por quê?

Marge Piercy: Estou com 76 anos de idade!

E: Mas achei que isso lhe concederia mais respeitabilidade.

MP: Não. Todos os editores são riquinhos recém-formados na casa dos vinte anos, enquanto os editores mais velhos foram todos demitidos. Eles não dão a mínima para o que você escreveu ou publicou anteriormente, preferem romances de estreia ou romances sobre pessoas como eles. Então, estou tendo bastante problema para conseguir publicar em Nova Iorque. Provavelmente terei de procurar uma editora menor. Além disso, estou trabalhando em uma coletânea de contos, pois tenho um contrato com a PM Press, uma editora anarquista que está republicando parte da minha obra política. Já relançaram dois romances e estão terminando o terceiro.

E: Por exemplo, Dance the Eagle to Sleep?

MP: Dance the Eagle to Sleep foi relançado com uma nova introdução em dezembro [de 2011], e em janeiro [de 2012] saiu Vida. No começo do ano que vem, não estou certa da data, vão republicar Braided Lives. Não escrevo contos há vinte e cinco anos. Reescrevi alguns antigos e vou escrever alguns novos. Tive de parar porque existe uma coisa chamada Declaração de Port Huron, que foi responsável pelo estabelecimento da Nova Esquerda nos Estados Unidos. Participei ativamente do Students for a Democratic Society [Estudantes em defesa de uma Sociedade Democrática], que era uma organização anarquista, com mais de um milhão de associados, e envolvidos com as questões antiguerra. Bem, fui chamada para falar numa conferência.[2] É o quinquagésimo aniversário da redação da Declaração, que foi a responsável por começar a coisa toda. Então pediram que eu falasse lá onde tudo começou e onde eu estudei, por isso estou escrevendo um discurso que vou proferir no campus da University of Michigan.

E: O romance que você está tentando publicar, sobre o que é?

MP: Diria que é sobre ganância, famílias e terras. Uso de terras.

E: Alguns de seus romances, como Going Down Fast ou Fly Away Home, lidam com a questão imobiliária. Como você se sentiu quando essa questão foi o gatilho para a última crise financeira (crise do subprime, em 2007)?

MP: Foi uma questão dos bancos, mais do que imobiliária. A cobiça dos bancos e instituições financeiras, de Wall Street, causou tudo isso.

E: Qual é sua opinião sobre o feminismo ou o utopianismo feminista no século XXI? Uma vez você disse que feminista era um xingamento, ainda é assim?

MP: Sim, a mídia tem realmente dito que o feminismo está morto e coisas do tipo. E muitas mulheres dizem: “Não sou feminista!, mas espero o mesmo pagamento por trabalhos iguais.” Ouvi mulheres dizerem “Não vou votar no [Mitch] Romney, porque ele não é, por exemplo, a favor de abortos, ele quer eliminar o aborto, mas não sou feminista”. Não gostam da palavra, é como socialista.

E: As pessoas falam que os socialistas viraram lenda depois da queda do Muro de Berlim…

MP: Eles ainda existem, só não estão visíveis na mídia.

E: A utopia ainda é possível depois do 11 de Setembro?

MP: Não acho que a utopia tenha a ver com isso, mas a utopia tende a se tornar uma possibilidade quando as pessoas se conscientizam. E elas têm energia o suficiente para pensar em alguma coisa melhor. Na primeira onda do movimento feminista, e em meados da segunda onda, havia muitas utopias feministas sendo produzidas e também muitas utopias socialistas e utopias proletárias etc. Mas quando as pessoas estão lutando com todas as forças para permanecer no mesmo lugar, manter os direitos que já conquistaram e que estão perdendo, então não há energia o suficiente para criar utopias. Além disso, já que os salários reais caíram tanto, as pessoas têm de trabalhar em dois ou três empregos para ganhar o que se podia ganhar facilmente num emprego de meio período nos anos 1960.

E: Quem você acha que está fazendo a diferença hoje em termos políticos e culturais?

MP: As organizações de base. Quando expulsaram os Occupy Movements[3] dos seus lugares, eles os enfraqueceram, porque não se tinha mais um local centralizador. Um dos pontos positivos do movimento Occupy era que havia um local centralizador, onde as pessoas podiam ir e falar de política, começar passeatas, desenvolver ações etc. Sem isso, é muito mais difícil.

E: As coisas ficavam menos concretas?

MP: Quis dizer um lugar físico, mesmo porque muitas coisas acontecem no ciberespaço, muitos protestos são organizados no ciberespaço.

E: Você acha que eles são efetivos, essa militância online?

MP: Sim, é uma boa forma de fazer as pessoas se mexerem.

E: Mas você não acha que existem pessoas que se mobilizam apenas na internet?

MP: Isso é possível.

E: E quem faz a diferença em termos culturais?

MP: Muitas mulheres que me acompanharam no movimento feminista estão mortas. Isso muda muito as coisas. Mas estou em contato virtual com muitas vozes novas e constantemente discutimos as coisas.

E: Você poderia me dizer um pouco mais sobre seu envolvimento com o utopianismo?

MP: Conscientemente inseri Uma mulher no limiar do tempo dentro da tradição utópica. As utopias que os homens criaram são muito rígidas, com tudo muito bem definido, geralmente um sistema de castas etc. Por isso me interesso pelas utopias como as que as mulheres criaram. Basicamente, as utopias feministas são lugares onde aquilo que as mulheres não têm poderá existir, ou seja, há um senso de comunidade, já que muitas mulheres ficam isoladas enquanto criam seus filhos. Um lugar onde as mulheres não são punidas por sua sexualidade, onde a criação das crianças é algo comunitário ou fortemente comunitário, um lugar onde pessoas de idade avançada são respeitadas e bem cuidadas. Um lugar onde tarefas que normalmente são rebaixadas na nossa sociedade são respeitadas, por exemplo, em Herland: a terra das mulheres (Rosa dos Tempos e Via Leitura), em que professores são altamente respeitados etc. Damos aos trabalhadores diaristas salários indignos, assim como a quem coleta o lixo, que é uma atividade importante. Todas essas tarefas não são recompensadas à altura. Damos mais valor para pessoas que empurram uma bola através de um aro, pessoas que assumem corporações e as destroem, pessoas que manipulam ações ou entidades imaginárias e enriquecem fazendo isso, brincando com o dinheiro de outras pessoas. Essas são as coisas para as quais mais damos valor, como ser famoso, como o The Kardashians[4]. Na maioria das utopias feministas, ou o dinheiro foi eliminado ou as pessoas são respeitadas de acordo com o quanto socialmente útil são os seus conhecimentos. São curandeiros? Árbitros? Professores? Pessoas que cuidam das crianças? Pessoas que produzem objetos úteis? Pessoas que cultivam alimentos ou fazem coisas de que a sociedade realmente precisa?

E: Há uma importante conexão com a natureza e com o politeísmo em Uma mulher no limiar do tempo que não temos em He, She and It.

MP: Bom, temos dentro da cidade [de Tikva, onde moram os protagonistas], não na sociedade como um todo. Na verdade, no segundo romance, a natureza foi quase toda destruída, algo muito parecido com a nossa situação. Isaac Asimov uma vez falou que “toda ficção científica consiste de três premissas: ‘e se…’, ‘já pensou se…’ e ‘se isso continuar…’”. Uma mulher no limiar do tempo foi basicamente “já pensou se”. He, She and It era “se isso continuar…”. E continuou muito mais rápido do que eu ou qualquer outra pessoa poderia ter imaginado naquela época em que fazia a pesquisa para o livro. É o aqui, agora. Eu moro numa região que mudou da zona 6 para a zona 7, onde o oceano mudou, as tempestades estão diferentes, onde tudo está muito mais extremo.[5] Costumávamos ter um clima mais ameno, não ficava tão frio, nem tão quente. Agora, se esfria, fica muito frio, se esquenta… o ano passado foi um dos anos mais quentes já registrados aqui.

E: E é engraçado porque há um bando de cientistas que dizem que essas mudanças são normais, que a Terra está sempre mudando e que não temos nada a ver com isso.

MP: Sim, eu sei e eles são doidos. Pode-se ver o que fizemos. Quando me mudei para cá pela primeira vez, andava na praia e via casca de ovos, búzios, conchas. A pessoa hoje anda na praia e vê o quê? Restos de absorventes, garrafas plásticas quebradas, manchas de óleo, isso é o que vemos agora. Estamos matando o oceano. Uma das coisas que um projeto que temos aqui, o Projeto Rio Huron, está tentando fazer é restaurar um pouco disso, reparar o que vem sendo feito nos últimos 130 anos, até o ponto que ele possa dar suporte à vida, aos seres naturais, a todas as coisas que deveriam estar aqui no lugar dessa poluição.

E: Você vê uma nova geração se inspirando no que você produziu e fez?

MP: Não, se inspirando não, mas eles estão começando do zero. Parece que eles não sabem muitas coisas sobre os eventos e estratégias e os sucessos e fracassos do passado. A história desaparece nos Estados Unidos, some.

E: Mas isso não é positivo, eu creio.

MP: Não, é horrível. Quer dizer que estão constantemente reinventando a roda. Houve coisas interessantes como a Marcha das Vadias[6], que foi algo espontâneo e que se espalhou rápido. Isso foi algo que achei interessante.

E: Mas você enxerga algum problema nelas também?

MP: Na verdade, não. Acho que foi bom. Pode-se julgar as atitudes das sociedades com relação às mulheres pela quantidade de roupa com que elas podem aparecer em público – por exemplo, nos países da Escandinávia, as mulheres podem fazer topless. Ninguém as incomoda.

E: O que você pensa sobre o que a mídia faz com isso? Por exemplo, aquele grupo ucraniano de mulheres que protesta nu [Femen] e as pessoas dizem que elas perdem poder político porque se tornam um espetáculo?

MP: Não sei nada sobre elas, mas o espetáculo é extremamente importante para fazer uma afirmação política. Rosa Parks, que começou parte do que foi chamado de “os movimentos dos direitos civis”, muito do que ela fez foi orquestrado, foi arranjado, era espetáculo. Fizemos diversas ações políticas de cunho espetaculoso, por exemplo, teatro de rua político em Nova Iorque durante as greves dos lixeiros. Quando a prefeitura não estava negociando com os grevistas, organizamos as pessoas das regiões da periferia para levar e deixar seu lixo no Lincoln Center. Aquilo foi espetáculo, tocou as pessoas. Há um elemento teatral em toda política bem-sucedida, para que as pessoas vejam do que você está falando.

E: Você me disse anteriormente que as pessoas estão esquecendo bastante. Poderia nos explicar mais?

MP: Primeiro, todo mundo vive o momento da mídia e ela não nos dá história. Até mesmo o History Channel não nos dá mais história de forma alguma, só “Trato Feito”, “Pesca na TV” e aquelas besteiras de “Alienígenas do Mundo Antigo”.[7] No começo, havia bastante história, mesmo que não fosse muito além da Segunda Guerra Mundial, mas costumava pelo menos ter essa história. No geral, os estadunidenses estão vivendo no momento da mídia, o que importa é o que as celebridades estão fazendo atualmente. Bom, o George Clooney liga tanto pra mim quanto eu pra ele. É um espaço manufaturado para o preenchimento, ela preenche sua mente e você não pensa nos seus problemas, não pensa na vida de forma séria. Se prestar atenção na quantidade de ruído com o qual os americanos vivem… Você entra num shopping, na estação de trem, no consultório do dentista, mesmo só esperando do lado de fora de um McDonald’s, sempre tem música, aquela música alegrinha, no consultório médico, no mercado, onde quer que vá, não há silencio. O silêncio é algo extremamente importante para a conscientização. As pessoas quase nunca têm tempo para pensar agora. Esperando na fila, o que você faz? Pega seu telefone e joga Angry Birds ou algo do gênero. Confere seu email. Não se senta mais em algum lugar simplesmente. Se a pessoa faz isso, ela chama de meditação. E é necessário aprender a fazer isso, e é um aprendizado difícil, porque não fomos treinados para tal.

E: Isso está relacionado ao processo de “conhecerasi” (inknowing) que você descreve em Uma mulher no limiar do tempo?

MP: Pra mim, o silêncio é algo extremamente importante, mas tenho noção de que até meu marido, catorze anos mais novo, se sente muito menos confortável com o silêncio que eu. Amo o silêncio, mas não cresci com ele; morávamos num casebre minúsculo onde tudo ficava meio junto num espaço pequeno. Mas adoro o silêncio, eis uma das razões pelas quais gosto tanto de morar aqui [em Cape Cod]. Aqui temos o silêncio. Na cidade, ele é um luxo, somente pessoas muito ricas podem comprar algum silêncio, mas aprendemos a viver com um certo nível de ruídos e distrações, os quais acho pouco saudáveis. As utopias escritas por mulheres na segunda onda do feminismo, não na primeira, tenderam a se interessar pela ecologia, se devotar a ela, à preservação do que é selvagem.

E: Como você avalia os impactos de Uma mulher no limiar do tempo e He, She and It em retrospectiva?

MP: O que se passa em He, She and It está acontecendo mais rápido do que eu ou qualquer outro cientista imaginávamos enquanto eu fazia a pesquisa. O aquecimento global não é uma teoria, está aí, acontecendo, já estamos nele, experimentando-o diariamente.

E: Se você estivesse escrevendo Uma mulher no limiar do tempo hoje, pelo que você acha que a protagonista Connie estaria passando?

MP: Ela estaria jogada nas ruas, entregue às drogas.

E: Não haveria nenhum visitante do futuro?

MP: Provavelmente não.

E: E uma questão sobre o personagem ciborgue em He, She and It, uma curiosidade que tive… Por que Yod teve aquele final?

MP: Porque estava programado para matar. É o mesmo motivo pelo qual, se você aceitar a metáfora, você treina um soldado. Pega-se um jovem, nos seus dezenove anos de idade, você o tira de casa, ensina a matar, ele se torna mau. Vê atrocidades enormes e jamais será o mesmo. Um reajuste à vida de civil é uma coisa que poucos conseguem. Alguns, jamais. Então, de certo modo, eles já estão mortos. Esperava que as pessoas fossem perceber isso, uma analogia que quase ninguém notou.

E: Algumas pessoas criticam seus romances por serem violentos demais. O que você acha dessa crítica?

MP: Acho que vivemos em um mundo muito violento. Vivo num país bastante violento. E praticamos a violência no mundo todo. Então, acho que se escritores não conseguirem lidar com a violência, ficarão presos a um mundo muito estanque, excessivamente ordenado.

E: Mas você acredita que, com o tempo, a violência vai diminuir?

MP: Não vejo isso em perspectiva.

E: Se as pessoas dizem que são pacifistas, eles terão problemas ao enfrentar um estado militarizado, por exemplo?

MP: Sim, acho que isso é um problemão. A não violência funciona contra sociedades que têm pelo menos uma pretensão de serem democracias, repúblicas e seguirem padrões parlamentares. Não funciona de jeito nenhum contra pessoas que querem matar. E mesmo em lugares onde o governo é muito poderoso, não creio que a não violência te leva muito longe, em lugares como a Síria e a Rússia, onde não gostam de protestos. Agora na Rússia eles podem não atirar em você, mas não se importam em te colocar na cadeia, mesmo para protestos moderados, como os das Marchas das Vadias.

E: E qual a importância da ficção científica para sua formação?

MP: Sempre gostei dela porque ela oferece alternativas, libera a imaginação da mesma forma que o realismo mágico. Você não fica apenas imaginando mais do mesmo.

E: Mas e o outro lado, a fantasia, como Harry Potter e similares?

MP: Vou ser sincera e dizer que gosto da série Fogo e Gelo, do R. R. Martin, gosto bastante. Então, gosto de alguns tipos de fantasia, apesar de Harry Potter não ser muito minha praia. Li um pouco, mas não me chamou muito a atenção. R. R. Martin, no entanto, é muito mais interessante. Seus personagens são muito mais desenvolvidos, ninguém é bom ou mau, todos têm seus próprios planos, que podem ou não ser bons para as outras pessoas. É muito mais realista de um ponto de vista psicológico e político.

E: Com quais autores você mais se identifica?

MP: Não me senti nada atraída pela ficção científica masculina quando comecei a lê-la, porque tudo que os autores faziam era imaginar a mesma coisa, só que acontecendo em Marte ou nas estrelas. Princesas, imperadores, esse tipo de coisa. Achei a obra de Ursula LeGuin muito interessante. Joanna Russ. Ela foi uma grande amiga, morreu ano passado [2011]. Nossa comunicação era muito boa.

E: Estava lendo The Female Man quando soube que ela havia falecido. E estava lendo The Illustrated Man quando soube que Ray Bradbury havia morrido.

MP: Ray Bradbury eu li e até que gostei um pouco, mas não fiquei fissurada como fiquei com a Russ ou a LeGuin. Quando você chega nos 76 anos de idade, começa a se esquecer de nomes. Havia uma mulher que morava em Toronto. Eu a conheci, gostei dela e de sua obra, já que ela também questionava os papéis sexuais. Fui professora da neta dela, que participou de um dos meus workshops de poesia, que dou todo ano em junho. Judith Merrill. Ela foi uma das primeiras mulheres a escrever seriamente ficção científica e lidar com os papéis sexuais. Já faleceu, infelizmente. Era uma mulher muito simpática, e gostei de ter passado um tempo com ela.

E: E você se sente desconfortável quando associam suas obras com a ficção científica?

MP: Não. Acho ridículo que pensem nela como um gênero menor. É muito mais interessante do que a ficção mainstream sobre a ansiedade das pessoas: a boa ficção científica lida com assuntos importantes e a ficção mainstream normalmente não. Eu chamei de ficção científica boa porque tem muita porcaria escrita no gênero, assim como tem muita poesia de merda, por exemplo.

E: Você pode nos contar alguma coisa que aprendeu escrevendo seus romances?

MP: Escrevo dois tipos de romances: um mais contemporâneo, sobre relacionamentos e coisas assim. E os outros são mais políticos, escritos tanto de ficção especulativa ou ficção histórica ou brincando com o tempo, que incluem Dance the Eagle to Sleep, Uma mulher no limiar do tempo, Braided Lives, He, She and It, City of Darkness, City of Light, e Sex Wars. São os que considero meus romances mais sérios.

E: O que você quer dizer com sérios?

MP: No sentido que eles buscam alcançar ou lidam com assuntos mais amplos.

E: Qual sua relação com o público leitor? Você tem algum tipo de resposta deles?

MP: Estou no Facebook, então eles se comunicam comigo. Recentemente, me mandaram uma mensagem nada amigável no Facebook. Cerca de cem pessoas responderam a ela.

E: Foi uma crítica?

MP: Dizia “Sinto muito ter lido seus livros algum dia na vida. Eles me arruinaram, e você deveria se envergonhar”.

E: Então, você consegue desenhar um mapa ou ter alguma ideia de quem está te lendo?

MP: Na verdade não, nunca dá pra saber. Faço tantas leituras públicas de poesia e me encontro com muita gente. São quem lê a minha poesia. Algumas pessoas leitoras do que escrevo em poesia coincidem com quem lê minha prosa, mas não tanto assim.

E: Qual é a relação das pessoas com sua poesia?

MP: Tudo que precisa ser lido tem muito menos relação com as pessoas do que costumava ter, porque a maioria das pessoas não lê mais livros. E, obviamente, pelo que vejo na internet, parece haver mais pessoas lendo meus poemas do que minha prosa, talvez porque a pessoa consiga ler mais rápido. Se você me googlar, vai encontrar centenas de poemas meus que as pessoas colocaram na internet.

E: Sou um deles (risos). Constantemente, quando estava fazendo pesquisa sobre você, encontrei diversos poemas.

MP: Mas às vezes eles estão errados e isso me deixa doida, porque não tem nada que eu possa fazer pra consertá-los. Eles me citam erroneamente. Isso me emputece.

E: Aposto que você está sempre revisando seus poemas.

MP: Alguns deles foram publicados primeiro em revistas e estão terminados da forma que foram publicados. Outros, não raro, na primeira vez que os leio em público, vou para casa e reviso; você consegue escutar o que não funciona de forma muito mais crítica. E tem aqueles que eu organizo em livros, tendo sido previamente publicados ou não, e grande parte deles é revisado antes de entrarem para o livro. E alguns mudo, mesmo depois de estarem publicados em livros, porque as coisas mudaram, ou faz muito mais sentido dizer uma coisa e não outra.

E: E você acredita que suas protagonistas hoje em dia estão mais distópicas? Normalmente elas aprendem algo sobre si, seus corpos, como tomar o controle de suas vidas de alguma forma. Há uma linha, com Connie, por exemplo, na qual ela decide deixar a posição de objeto das outras pessoas e se torna sujeito de suas ações. Mas Melissa Dickinson, protagonista de The Third Child, parece não sofrer tal processo.

MP: Ela não sofre mesmo, porque não era sobre esse tipo de personagem que eu estava escrevendo. Escrevi sobre alguém que mente pra si mesmo, que não tem consciência e não está aprendendo a entender nem a si nem a sua posição. Por isso as pessoas não gostam dela. Mas em Sex Wars as personagens mudam bastante. No meu romance mais recente, ainda não publicado, há o ponto de vista de três personagens, e duas delas se conscientizam. Uma delas é uma idosa, aparentemente no fim da vida, que está tentando proteger certas coisas, tentando entender como ela pode ser mais esperta que a filha, que deseja urbanizar os terrenos da família. Tanto ela quanto a neta mudam.

E: Há um romance distópico brasileiro chamado O Presidente Negro. Você já ouviu falar?

MP: Nunca ouvi falar.

E: E como você se sentiu quando [Barack] Obama foi eleito presidente?

MP: Sou voluntária para ele. Meu marido viajou até Vermont e fez campanha de porta em porta. Eu fiz ligações.

E: Então você acredita que a eleição dele foi algo importante, uma mudança…

MP: Bom, era melhor que o outro, [John] McCain. Nunca morri de amores pelo Obama, não fui cativada por ele como outras pessoas, mas achei que ele era uma opção muito mais viável que a alternativa. Preferia que fosse a Hillary [Clinton], ela era mais forte, acho que ela seria capaz de fazer muito mais coisas passarem no Congresso.

E: Você poderia dar algumas dicas para quem está começando a escrever?

MP: Leia. E aprenda a ler como quem escreve, o que quer dizer, observando como as coisas são feitas; aprende-se tanto com os livros que você não gosta quanto com os que gosta. Por que aquilo não funcionou? Por que não acreditei naquilo? Por que aquilo me pareceu excelente? Como os autores usam o diálogo? Como eles avançam as ações? Como eles criam um ritmo? Como eles fazem você se identificar com os personagens, se eles assim o quiserem? Às vezes, certos escritores não querem que você se identifique com as personagens. Não quero que se identifique com a Melissa, quero que a observe.

E: Não pude mesmo me identificar com ela.

MP: E você não deveria. Acho que este foi um dos meus romances menos bem-sucedidos, um dos menos atraentes.

E: Mas você esperava esse tipo de reação?

MP: O que parece é que não realizei bem o que queria. Foi um tipo diferente de romance, mas descobri que universitários gostam bastante da história, identificam-se com ela.

E: Para concluirmos, algumas pessoas reclamam que, mesmo você sendo politizada, seu estilo está mais ligado ao realismo tradicional, não sendo muito vanguardista. Como você responde a tal crítica?

MP: Primeiro, se você quer atingir as pessoas, não deve tornar a escrita mais obtusa, nem tentar excluí-las. Segundo, é normalmente mais difícil para um poeta escrever de forma simples do que escrever um poema mais rebuscado: dá muito mais trabalho, exige muito mais técnica.

 

Referências:

Piercy, Marge. Parti-Colored Blocks for a Quilt (Ann Harbor: The University of Michigan Press, 1982), 6, 117 e 114.

Obras mencionadas: Moylan, Tom. Demand the Impossible (New York: Methuen, 1986); Ferns, Chris. Narrating Utopia (Liverpool: Liverpool University Press, 1999); Ruppert, Peter. Reader in a Strange Land: Activity of Reading Literary Utopias (University of Georgia Press, 1986); Cranny-Frances, Anne. Feminist Fiction: Feminist Uses of Generic Fiction (New York: St. Martin’s Press, 1990) and Broad, Katherine R.. “Courting Utopia: The Romance Plot in Contemporary Utopian Fiction”. PhD diss., CUNY, 2012. Outros exemplos de artigos científicos na área nas diferentes áreas das ciências humanas são Trainor, Kim. “‘What Her Soul Could Imagine”: Envisioning Human Flourishing in Marge Piercy’s Woman on the Edge of Time”. Contemporary Justice Review. Vol. 8, No. 1, (March 2005): 25-38; Booker, M. Keith. “Woman on the Edge of a Genre: The Feminist Dystopias of Marge Piercy” Science Fiction Studies, Vol. 21, No. 3 (Nov., 1994):337-350 e Rudy, Kathy. “Ethics, reproduction, utopia: Gender and childbearing in Woman on the Edge of Time and The Left Hand of Darkness”. NWSA Journal, Vol. 9 (Spring, 1997): 22-38.

Em língua portuguesa, encontramos duas dissertações sobre a autora: Cavalcanti, Ildney de Fátima Souza. Marge Piercy’s protagonists: beyond the stereotype of passivity. 1989. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal de Santa Catarina.  Schneider, Liane. Marge Piercy’s and Doris Lessing’s Female Subjects: The Politics Of Representation. 1995. Dissertação (Mestrado em Letras) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

 

Notas:

[1] Como o último romance publicado pela autora data de 2005, imagina-se que este romance ao qual ela se refere não chegou a ser publicado.

[2] Em junho de 1962, um grupo de ativistas pertencentes à Students for a Democratic Society (SDS) se encontraram em Port Huron, Michigan, para rascunhar um documento ou manifesto para uma nova era de protestos. A Declaração de Port Huron reuniu princípios da “Luta pela Liberdade Negra”, o movimento pela paz, e as revoluções anticolonialistas. Ele se colocava como uma visão radical de justiça social e o que a democracia em ação deveria significar – e representou o nascimento do movimento da Nova Esquerda, que futuramente causaria impacto no mundo todo. Piercy aqui está se referindo a um encontro de três dias chamado Uma nova insurgência: A Declaração de Port Huron em sua época e na nossa, que serviu para celebrar o aniversário de cinquenta anos da declaração e aconteceu na universidade de Michigan entre 31 de outubro e 02 de novembro de 2012.

[3] Ela está se referindo à manifestação estadunidense dos movimentos de protestos que eram parte de um esforço internacional de luta contra as desigualdades econômicas e sociais. Grupos locais tinham diferentes objetivos, mas os movimentos em geral buscavam relações políticas hierarquicamente menos verticais na sociedade e uma economia mais distributiva.

[4] Programa reality show de televisão norte-americano que acompanha a vida de uma família de famosos. Muitos criticam o programa porque mostra os famosos simplesmente por serem famosos. O programa que mais se aproxima dele no contexto brasileiro seria A Fazenda.

[5] Marge usa as palavras “zonas” para se referir a um índice geográfico criado pelo Ministério da Agricultura estadunidense chamado em inglês de “hardiness zones”. Trata-se de um conceito que, ao pé da letra, seriam “zonas de rusticidade”, ou seja, um índice que divide as regiões de acordo com as temperaturas que permitem o cultivo de certa vegetação ou plantação. Não utilizamos tal categoria no Brasil.

[6] Um tipo de protesto iniciado em Toronto, Canadá, com subsequentes marchas por vários lugares do mundo. Os manifestantes eram em sua maioria mulheres que estavam lutando para acabar com a cultura do estupro e pelo direito de se vestir e se comportar como melhor lhes aprouvesse, sem se submeter às regras do patriarcalismo.

[7] Aqui Marge se refere a programas da TV Americana, respectivamente, “Pawn Stars”, “Hillbilly Handfishin’” e “Ancient Aliens”. O primeiro é um reality show sobre a vida de uma família que possui uma casa de penhores. O segundo é um programa sobre pesca e o terceiro apresenta hipóteses de antigos astronautas e propõe que textos históricos, arqueologia e lendas contêm evidências de contato humano-extraterrestres.